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A ignorância como projeto

Foto do escritor: Rogério Baptistini MendesRogério Baptistini Mendes

Ensinar a ler é o início de tudo, mas é preciso mais para livrar um ser humano da ignorância e torná-lo senhor do seu destino.

Garrincha

O adjetivo ignorante define alguém que é inculto, que não tem instrução. Também é utilizado para qualificar aquele que ignora, que desconhece. Exagerando, poderíamos dizer que todos somos ignorantes em certo sentido, pois o mundo ao nosso redor nos é estranho, parece dotado de vida própria, intangível ao nosso controle. É a isso que se chama alienação, quando os processos históricos transformam os seres humanos de sujeitos criativos em objetos passivos de processos sociais[1].


É na condição de ignorante que podemos enquadrar Garrincha, o "Anjo das Pernas Tortas"[2]. Ele, como a maioria dos brasileiros da mesma origem, nos primeiros anos da década de 1930, foi criado para continuar a sina familiar e se manter entre os “de baixo”. Descendente de nativos, a quem aprendemos a chamar de índios, o menino batizado Manoel dos Santos frequentou até a terceira série e mal aprendeu a ler e escrever o nome. Era um quase analfabeto.


Em um artigo em que trata da importância da alfabetização, o físico Carl Sagan comenta a vida de Frederick Bailey[3], que no início do século XIX, na condição de escravo, mesmo sob as leis que proibiam o ensino aos negros, aprendeu a ler e descobriu o grande segredo: “Eu agora compreendia [...] o poder do homem branco de escravizar o homem negro. A partir daquele momento, eu compreendi qual era o caminho da escravidão para a liberdade.”[4]


Garrincha, um século depois de Bailey, seguiu um percurso diferente num mundo que havia abolido formalmente a escravidão. Enquanto o escravo norte-americano se tornou um intelectual, o homem livre brasileiro se fez artista popular. E nesta condição, alegrou o povo nos estádios enquanto a sua vida era consumida pelo excesso de álcool. Desatento em relação aos contratos, vítima dos cartolas e da própria ignorância, morreu pobre e relativamente esquecido em janeiro de 1983, aos 49 anos[5].


A ignorância é uma arma poderosa manipulada pelos “de cima” para a manutenção do status quo. O ser humano inculto, sem instrução, é como alguém que caminha no escuro, vítima do medo. Incapaz de compreender ou entender os fenômenos, é assombrado por coisas invisíveis, anjos e demônios. É alguém que desconhece a verdade e sofre todo o tipo de manipulação. Foi assim que, na primeira metade do século XX, o desastre se abateu sobre a humanidade[6].


Se os regimes totalitários, o genocídio e a guerra mundial são acontecimentos extremos que ficaram no passado, o século XXI acena com novas ameaças. Aspirantes a tiranos ganham projeção e são eleitos em várias partes do mundo. Donald Trump, Javier Milei, Viktor Orbán e Benjamin Netanyahu, entre outros, emulam o pensamento do capitão Hugh Auld, a quem o escravo Frederick Bailey servia: “um preto deve saber servir apenas ao seu senhor -deve cumprir ordens. O conhecimento estragaria o melhor preto do mundo. Se você ensinar esse preto a ler, não poderemos ficar com ele. Isso o inutilizaria para sempre como escravo.”[7]


Hoje, Frederick Bailey e Garrincha são os pobres e humildes do mundo, que sobrevivem com menos de 6,85 dólares ao dia enquanto os 10 % mais ricos do globo acumulam 45 % de toda a riqueza[8]. Mantê-los na ignorância e manipular os seus medos é uma forma exercitar o poder sem freios.


Num mundo da internet e das redes sociais, dominado pelos plutocratas da nova direita, se afirma que as pessoas têm acesso livre à informação e decidem por si mesmas. O que não se discute é algo mais elementar e básico.

“Muitos dos que são considerados alfabetizados não conseguem ler, nem compreender material muito simples -muito menos um livro da sexta série, um manual de instruções, um horário de ônibus, o documento de hipoteca ou um programa eleitoral. E os livros da sexta série [...] são muito menos exigentes e desafiadores do que algumas décadas atrás [...].[9]


A educação começa com a alfabetização. Ensinar a ler é o início de tudo, mas é preciso mais para livrar um ser humano da ignorância e torná-lo senhor do seu destino. Talvez seja preciso retornar ao básico e lembrar dos professores, de sua capacidade de ensinar, informar e inspirar as gerações a buscar a verdade. Analogicamente, na sala de aulas.

 

Notas:


[1] Ver o verbete alienação em William Outhwaite & Tom Bottomore.. Dicionário do pensamento social do século XX.


[2] Garrincha recebeu o apelido "Anjo das Pernas Tortas" devido a uma condição física de nascimento, assim descrita em sua biografia: ”A perna esquerda era arqueada para fora e a direita para dentro, paralelas, como se uma rajada de vento de desenho animado as tivesse vergado para o mesmo lado.” Cf. Ruy Castro. Estrela Solitária: um brasileiro chamado Garrinha.


[3] Sob o nome de Frederick Douglass, Bailey escreveu o livro “Narrativa da Vida de Frederick Douglass, Um Escravo Americano”. Carl Sagan deve basear seu artigo nesta obra de 1845.


[4] Citado por Carl Sagan. O Mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. P. 345.


[5] Ruy Castro, em sua já citada obra Estrela Solitária: um brasileiro chamado Garrinha oferece uma excelente reconstrução da biografia de Garrinha e ajuda a compreender a dinâmica social que conduz um gênio do futebol à pobreza, ao esquecimento e à morte.


[6] “Dois dos regimes mais abomináveis da história da humanidade chegaram ao poder no século XX, e ambos se estabeleceram com base na violação e no esfacelamento da verdade, cientes de que o cinismo, o cansaço e o medo podem tornar as pessoas suscetíveis a mentiras e falsas promessas de líderes a alcançar o poder incondicional”. Michiko Kakutami. A morte da verdade: notas sobre a mentira na era Trump. P. 9.


[7] Citado por Carl Sagan. Op. Cit. P. 344.


[8] Relatório de 2025 da OXFAM. Cf. Ritmo de concentração de renda aumenta, mostra relatório Oxfam 2025. In: Espaço Democrático.


[9] Carl Sagan cita a situação dos Estados Unidos em 1995. Op. Cit. P. 351.


Referências:


Carl Sagan. O Mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.


Michiko Kakutami. A morte da verdade: notas sobre a mentira na era Trump. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2018.


Ritmo de concentração de renda aumenta, mostra relatório Oxfam 2025. In: Espaço Democrático. Disponível em < https://espacodemocratico.org.br/nao-deixe-de-ler/ritmo-de-concentracao-de-renda-aumenta-mostra-relatorio-oxfam-2025/ > Acesso em 04/02/2025.


Ruy Castro. Estrela Solitária: um brasileiro chamado Garrinha. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.


William Outhwaite & Tom Bottomore. Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.



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